O afidalgamento de Lisboa

Nasci em Lisboa, e aqui vivi de forma permanente até 1998. Depois disso, já vivi noutros 7 países, em 3 continentes. Na minha vida já fui a mais de 50 capitais, em 4 continentes. Vivi em Amesterdão depois do boom das low cost, e já lá tinha ido antes. Vivi em Cracóvia em pleno boom das low cost. Isto serve para dizer que falo com conhecimento de causa, por experiência própria e não apenas de conhecimento teóricos ou académicos.

Os fenómenos sociais são algo que me interessam, e muito. Quando vivia na Escócia, tive uma namorada Holandesa (com a qual acabei por ir viver para Roterdão, antes de mudar para Amesterdão) que, de vez em quando, telefonava para a Holanda. Reparei no seu ar tenso e perguntei-lhe porquê. Ela respondeu-me, para minha estupefação, que uns amigos dela passavam uma noite em casa dela uma vez por semana, com as luzes acesas e sinais de que a casa estava habitada. Quando lhe perguntei porquê, ela explicou-me que tinham uma lei na Holanda que permitia a que pessoas sem domicílio fixo (os chamados sem-abrigo) entrassem à força numa casa desabitada e que aí ficassem a morar se ninguém viesse reclamar a sua propriedade e uso em 30 dias. Tinham de informar a gementheid (Câmara Municipal), a polícia e as finanças, depois era-lhes atribuída uma renda social (que todas as CMs tinham de manter atualizadas) e tinham direito a morar ali. Se o proprietário voltasse, não poderia expulsar as pessoas. Isso pareceu-me do outro mundo, vindo de uma capital onde havia (e há) milhares de sem-abrigo. Informei-me e constatei que, devido a confrontos e convulsões sociais depois da 2ª GGM, chegaram na Holanda a um acordo, a um contrato social, em que se uma casa estava vazia e desabitada, se poderia entrar e ficar com direito a morar ali.

Quando cresci defendia muito a iniciativa privada e era manifestamente de direita (o Rui Godinho, o Gadão, a brincar até dizia que eu era pior que o Pedro Arroja, que queria privatizar os Rios Portugueses). A vida e a experiência, felizmente, fez-me mudar, de opinião e de visão. Em Paris reparei no quão forte e importante eram os movimentos sociais e os direitos dos cidadãos. É o país que mais investe no mundo na cultura em termos percentuais do PIB. Para além disso, tem o estatuto dos intermitentes do espetáculo, que permite que os artistas que normalmente tem uma vida precária e muito sazonal tenham segurança social, paguem impostos, tenham assistência na doença e recebam algum dinheiro nos meses em que não trabalham. Para além disso, a praça em frente à Câmara Municipal do Primeiro Bairro de Paris chama-se ¨Place de la Grève¨. Isso diz do poder do povo que fez a Revolução Francesa (apesar de agora se estarem a deixar comer, e à grande, na história das vacinações obrigatórias, um escândalo que vai para a frente, apesar de ter havido um abaixo-assinado com mais de 1 milhão de assinaturas a favor do direito da liberdade de escolher, preparado e submetido por médicos e outros profissionais de saúde). A França ainda é a exceção cultural, um oásis no meio de políticas submetidas a uma implacável e desumana lógica de mercado.

Ouço e leio muitas pessoas a defender que a atual gentrificação, ou afidalgamento, de Lisboa (e Porto, e Algarve, e Alentejo, enfim, de Portugal) é bom, que é positivo, porque as casas são restauradas, porque dá empregos, porque faz circular riqueza que há divisas que entram, que se renova o parque urbano (porque menos o rural) e outros argumentos que tais. Concordo com alguns desses pontos, mas parece-me que a estratégia em Portugal (haverá ou terá alguma vez havido alguma verdadeira estratégia?) não é a melhor, que as coisas acontecem muito ad hoc. Ora vejamos: tenho vários amigos que já tiveram de abandonar as casas onde cresceram e viveram desde sempre, pois o prédio foi comprado por especuladores imobiliários, chineses, franceses e outros. Esse dinheiro circulou sim, mas uma boa parte não ficou cá, sumiu-se nos circuitos e mercados financeiros internacionais (os mesmos que nos estrangularam e sugaram há uns anos).
Há movimentos recém-criados de resistência, que têm conseguido resistir pontualmente às expulsões forçadas, despejos, negociações para venda e aumento de preços generalizado que força ao abandono. Mas são uma gota de água num deserto de abandono dos locais. Portugal está na moda, e sobretudo Lisboa, Porto e o Algarve. Acontece que esta moda, tal como todas as outras, vai passar. E o que aconteceu em Detroit, em muitas cidades e vilas de Espanha à China, passando por Barcelona ou Atenas, são claros exemplos de que a construção, remodelação, planos de ubanização, afidalgamento e suposto desenvolvimento são, na esmagadora maioria dos casos, míopes e com um efeito rebound terrível a médio-longo prazo. Espero bem que Portugal ainda arrepie caminho e faça diferente, para melhor. Porque o turismo de massas (a turistificação indiferenciada), a McDonaldização das nossas cidades com as marcas, hóteis, fast-foods, wine bars, barbearias gourmet, livrarias da moda, e concept stores do costume tem tido e vai ter consequências terríveis, mortíferas, para tudo e para todos. Vistos dourados, com isenções fiscais a estrangeiros endinheirados, enquanto os Portugueses são sobrecarregados com uma carga fiscal cada vez maior (e um IVA absurdo, letal), sem contrapartida real nos serviços e regalias dados pelo Estado (que continua a subsidiar combustíveis fósseis mais do que faz à energia verde e a vender os bens e recursos naturais de todos nós, por tuta e meia).

Concordo que se tem de fazer algo às casas abandonadas, Aliás, tenho esse problema na minha família! A minha avó paterna faleceu há dois anos e a herança continua indivisa, sem resolução amigável à vista. E o património a degradar-se, e nenhum dos herdeiros (o meu pai e a minha tia) podem fazer o que quer que seja dele. Certamente que há muitos milhares de casos assim em Portugal. Aumentar o IMI é certamente um dos métodos fáceis de impedir que as casas fiquem vazias, mas também é um encargo enorme para os Portugueses, que já vivem com um rendimento bastante inferior à média Europeia, e pagam bastante mais por certos produtos tecnológicos ou biológicos (já para não falar de alguns essenciais e básicos, como água e eletricidade). Parece-me muito bem aumentar o IMI sim, mas o de prédios devolutos, e fazendo onerar não somente o ou a cabeça de casal, mas sim todos os herdeiros. Assim, se um dos herdeiros não quiser resolver o assunto (o caso da minha tia), não é o cabeça de casal que deve ter de pagar um IMI agravado sobre um ou vários imóveis dos quais não pode dispôr. Aumentar o IMI tout court, por outro lado e para todos os casos, é apenas tornar ainda mais difícil a vida dos Portugueses, e vai levar a ainda mais especulação financeira, fuga de capitais e degradação social.
Assisti ao fenómenos do afidalgamento como residente em cidades como Amesterdão, Cracóvia, Paris, Londres, Glasgow, Tavira e Lisboa, enquanto turista e visitante em muitas outras, como Veneza, Florença, Milão, Roma, Barcelona, Madrid, Budapeste, Porto, Copenhaga, Dublin, Luxemburgo, Bruxelas, Helsínquia, Munique, Berlim, Dresden, Varsóvia, Gdansk, e tantas outras que até me esqueço. O que parece ser bom de início, rapidamente demonstra não o ser assim tanto…

Os PDMs são bons instrumentos de planeamento urbanístico, é pena é que imensos estejam mal elaborados, constantemente em atraso e que não sejam cumpridos. Em Portugal temos um corpus legal dos mais completos da Europa, legislamos sobre “tudo e um par de botas”. Quando era mais novo acahava, ingenuamente, que isso era muito bom. Só mais tarde percebi que isso era algo feito de propósito, pois permite que quem tem meios suficientes possa sempre encontrar um buraco na lei, uma alínea esconsa num decreto-lei ou regulamentação que convenientemente se esqueceram de revogar e que lhe permite “safar-se”. Isso e o facto de a fiscalização e o sistema jurídico-penal não funcionarem ou terem meios ridículos para a árdua tarefa que têm pela frente. Junta-se a corrupção endémica em Portugal, a todos os níveis da sociedade, e temos um belo cozinhado…
Alguns vão algumas fotos, artigos e ligações interessantes sobre a temática:

Algumas fotos da minha vizinhança directa, onde cresci em Lisboa. Nela podemos ver um bom exemplo de recuperação de um edifício histórico, na Av. Duque de Loulé, que vai ser um guetto de burgueses, uma ruína na rua onde cresci, que esteve abandonado desde sempre e continua a degradar-se, alheio à revolução em curso. Ali “podia viver gente”, ou podiam morar mais uns turistas low cost, ou até uns burgueses aperaltados…
Uma lavandaria (há outra a menos de 100 metros), mesmo em frente a casa os antigos ISSS (Instituto Superior de Serviço Social, agora escritório de advogados) e INP (Instituto de Novas Profissões, prédio devoluto há bem mais de uma década), que agora foram para longe, por ser muito mais barato e terem “melhores condições”, e faltam ainda muitos outros bem perto, como a horrível nova sede da PJ, que destruiu o lindo edifício da Faculdade de Medicina Veterinária; o Collegiate, novo guetto para estudantes aburguesados e maioritariamente estrangeiros (poucos Portugueses poderão pagar no mínimo 400€ para morar no centro de Lisboa); vários hóteis na Av. Fontes Pereira de Melo, na Av. Liberdade e outras veias e artérias circundantes que destruiram prédios lindos;

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http://www.detroits-great-rebellion.com/Urban-Renewal.html

https://www.theguardian.com/travel/2014/mar/02/detroit-michigan-first-steps-urban-renewal

http://www.lefthandrotation.com/museodesplazados/ficha_rualagares.html

http://www.jornalmapa.pt/2017/09/15/na-lisboa-dos-hoteis-so-vivem-os-reis/

https://axiodrama.wordpress.com/2017/03/04/resistencia-contra-a-gentrificacao/

https://upcommons.upc.edu/bitstream/handle/2117/82553/09_02_GoncalvesMendes.pdf?sequence=1&isAllowed=y

http://www.jornaleconomico.sapo.pt/noticias/o-processo-de-gentrificacao-em-curso-nas-cidades-e-periferias-de-lisboa-e-porto-264850

http://clam-ptreyes.org/

https://obeissancemorte.wordpress.com/2018/03/12/nada-foi-tao-bem-planificado-neste-mundo-como-a-morte-das-cidades/

Abaixo-assinado sobre a gentrificação no Porto, Património da Humanidade: http://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=CentroHistricoPorto

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